A arte imita a vida, seja ela bela ou não

Júlia Paes de Arruda
3 min readJul 13, 2020

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Por Júlia Paes de Arruda

Partindo do conceito etimológico de estética como a percepção através dos sentidos, a concepção do mundo e das pessoas são apoiadas no juízo de valor captadas pelo olhar e pelo vínculo comunicacional estabelecido com o próximo. Nesse caso, se faz necessário o “treino” dessas percepções, como diria Luis Mauro Sá Martino, para que elas fiquem claras e plausíveis ao indivíduo.

Paralelamente a esse conceito, temos a questão da comunicação, a qual gira em torno da sensibilidade a ser atingida pelo seu público. Isso já é estipulado a partir da capa de um jornal ou de uma revista. Há pouco tempo, as capas das revistas Vogue Portugal do mês de abril e Piauí do mês de maio, trouxeram interpretações divergentes acerca das suas percepções da realidade frente a pandemia de coronavírus que o mundo vem sofrendo. Ambas se baseiam no contato íntimo entre dois sujeitos através do beijo.

Esse tipo de representação me fez lembrar da obra “Os Amantes”, de 1928, do pintor belga René Magritte. Nessa obra, as figuras estão desfrutando de um beijo, porém ambos estão separados por um véu que cobrem suas cabeças. O véu acaba se tornando uma barreira que impede a conexão entre os amantes. Dentre muitas interpretações, essa separação pode ser resultado de frustrações e do isolamento os quais vivenciam.

Os Amantes. René Magritte, 1928 — óleo sobre tela. (Foto: Reprodução)

Tangendo essa perspectiva, a capa da Vogue Brasil traz um casal que também desfruta de um beijo. Porém, diferente de Magritte, eles são separados por máscaras cirúrgicas. No contexto pandêmico que se vive hoje, as máscaras se tornaram um acessório para evitar contaminações pelo Covid-19 em ambientes externos a nossa casa. Para além da funcionalidade de proteção, elas servem para o indivíduo se manter isolado do resto do mundo. Na parte inferior da capa, há ainda os escritos “Freedom on hold” — liberdade em espera, em português. A mensagem, então, se resume na preocupação das pessoas privarem da sua própria liberdade, do toque, para salvarem as suas próprias vidas e as de outros que também ambientam sua realidade.

“Covid-19, o medo não irá nos parar”, Vogue Portugal — abril/2020. (Foto: Reprodução)

Já na capa da Piauí, estampam-se a silhueta do presidente Jair Bolsonaro envolto dos braços da silhueta representativa da Morte, sem qualquer impedimento do toque entre ambos. Nesse caso, a diagramação da capa faz alusão a irresponsabilidade e a despreocupação do governante frente aos casos de coronavírus no Brasil (que só aumentam). A falta de um tecido separando-os é muito significativo já que Bolsonaro despreza as recomendações sanitárias estipuladas no mundo inteiro ao frequentar
manifestações, eventos e outros compromissos sem o uso de máscaras, carregando “eleitores mirins” no colo e apertando a mão de seus apoiadores. Além disso, trata a pandemia com desdém, ignorando mortes de milhares de brasileiros com um “e daí?”, espalhando a ideia de que se trata de apenas uma “gripezinha” e escondendo dados acerca do quadro atual da pandemia.

Revista Piauí, maio/2020. (Foto: Reprodução)

De volta a obra de Magritte, outra interpretação que lhe pode ser atribuída é a incapacidade de nos revelar inteiramente ao próximo, escondendo a verdadeira natureza a qual somos formados. Através da publicação da Piauí, vemos que a do presidente é derivada da morte — genocida, fria, despreocupada com as pessoas a serem atingidas. Só não vê quem está preso com os véus na cabeça.

Nota: esse artigo de opinião foi realizado para a matéria de Estética, Comunicação e Mídia, ministrada pela professora Mara de Santi (junho/2020).

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Júlia Paes de Arruda
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Written by Júlia Paes de Arruda

Vim da terra da Ilze Scamparini pra fazer jornalismo na Unesp.

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